A Fantástica casa amarela - Ana Boléo

teste

Título: A Fantástica casa amarela
Autor: Ana Boléo
Sobre o livro:

Recensão e apreciação: Boléo, A. (2023). A Fantástica casa amarela. Artelogy
Apresentada por: Ana Maria Pessoa 
Declaração de interesses:
Conheço a Ana Boléo de há mais de 15 anos, creio, sempre com um estatuto de professora muito precária, descartável quando necessária, nesta instituição. 
Quando soube que tinha escrito um livro para crianças, mesmo ainda sem saber o tema e quando se colocou a hipótese de aqui fazer um lançamento, ofereci-me para o apresentar. Voluntarismo? Irresponsabilidade? Por que razão? Porque sempre lhe achei um sentido de humor desconcertante, uma forma polémica de ser profissional, dona de uma gargalhada e tom de voz inconfundíveis, ideologicamente confiante e sempre solidária com o outro (Kapuscinski, 2009).
Também tenho acompanhado e admirado, sempre, a opção de vida que fez enquanto mãe que a criar uma família muito diferente da que era a sua de origem, e à qual levou a adoção incondicional de alguém.
Há uma última certeza que me permite dizer o que me apetecer sobre o livro: nunca falámos sobre esta aventura de escrever, para dar a ver aos outros, para se submeter à crítica, ao juízo, à aceitação ou contestação exceto no dia do lançamento em que, tendo-a visto nos corredores, lhe dei os parabéns pelo novo desafio concluído. 
Quando soube qual era o tema, quando vi o livro porque ela gentilmente mo ofereceu...começaram os problemas. O que sei eu sobre adoção? Depois de ler o livro outas questões se me colocaram e são essas, precisamente, que agora exponho.

Vamos ver o livro (que lugar num Clube de leitura, que categorização em literatura infantojuvenil, que estética, entre muitos outros), começando pelo que não gostei e depois passo ao que apreciei uma vez que isso é o que se pretende com um clube de leitura enquanto lugar “de encontro e interação, [onde se trocam] ideias e [se] desenvolve o sentido crítico, compartilhando as suas experiências e descobertas, debate os seus gostos acerca dos livros lidos e fazendo-se leitores a partir dos livros.?Estes clubes devem proporcionar aos jovens a possibilidade de desenvolverem uma voz crítica e pessoal sobre o que leem” (PNL, 2023).
Embora não faça parte dos jovens a quem os Clubes de leitura do PNL se dirigem, há muito que tenho o vício da leitura e que aprecio a partilha de ideias assim como uma boa discussão/reflexão a propósito de assuntos sobre os quais tenha lido. 

Do que não gostei?

Como sabemos, o marketing que atualmente domina as montras das livrarias físicas ou os grandes espaços comerciais, implica que cada livro exposto tenha de obedecer a critérios muito rígidos de seleção. O que se vê, não importa se tem (ou não) qualidade. Tem de provocar impacto visual pois o que não está visível, não se vê e, se não se vê, não se vende...e a ditadura da concorrência é a única aceite na escolha, disposição e oferta de livros nos escaparates. Já nas redes sociais e noutros espaços virtuais, a concorrência é feita com recurso a outros critérios que aqui não se exploram. 

Quando olhamos para a capa e para as 3 outras que integram o livro, temos dificuldade em perceber se, por elas, este livro, atrairia alguém... Tem um estilo Otto Kubel (1868-1951) e postais ilustrados anos 60 séc. passado. 

Percebe-se que a autora não tem responsabilidade desta opção porque as referidas imagens ou ilustrações são oferecidas pela editora, feitas por “ilustradores de enorme talento” constando esta cláusula do contrato de edição (ponto 4). 

 Ainda nesse mesmo ponto do contrato afirma-se que “acreditamos que as imagens são muito importantes, num livro para crianças”. Não podemos estar mais de acordo mas, nem elas o fazem, e não é aqui o local para dissertar sobre a literacia visual e a sua utilização em livros para crianças. Discordo totalmente da afirmação que se segue no mesmo ponto do contrato, ou seja, a de que “contudo o principal objetivo é que as mesmas criem hábitos de leitura”. Uma ilustração pode criar hábitos de leitura? 

 Ao lançar um primeiro olhar para a capa e, se se souber ler, somos induzidos numa incorreta interpretação do adjetivo que precede a identificação da casa protagonista do livro: em letras maiúsculas e a cor diferente ficam destacadas duas sílabas – TICA – que não permitem uma leitura fluente e nos fazem hesitar entre prosseguir a leitura global do mesmo ou voltar atrás e iniciar uma leitura silábica de cada uma das palavras que compõem o referido título. Parecem aqueles fechos que vão a correr e que, de repente, emperram a meio do percurso...

Uma dedicatória, sincera e forte, não merecia ser colocada no verso da anteguarda como é a assinatura de posse num exemplar de um livro de Aquilino Ribeiro (Um escritor confessa-se) porque uma assinatura de posse não é uma dedicatória a uma filha...
 
A mancha de texto é compacta e, 24 páginas num livro para crianças, não é nada apetecível se essa criança ainda não tiver o gosto ou o vício da leitura. Nunca falo de prazer da leitura pela imediata conotação que estabeleço com a imagem que, sob o mesmo título, Almada Negreiros publicou no Sempre Fixe (1934) e de que a Biblioteca Nacional de Portugal fez tema para um postal ilustrado que publica. 

Do título e da ilustração da capa também não se infere, de imediato, o tema fundamental do livro. Por experiência própria sei que os títulos nem sempre são o produto da vontade de quem os escreve. Neste caso, um outro em que o tema fosse mais rapidamente visível, teria sido uma boa aposta. Num mercado em constante competição, já se joga muito na imagem mas ainda se arrisca pouco nos títulos fortes e impactantes. 

Da ideia bem interessante de incluir perguntas para ir avançando na história a contar, como se de um diálogo entre autora e criança leitora se tratasse, saem algumas questões que em nada acrescentam sentido ao desenrolar do texto. Estão neste caso as perguntas que, após um excerto sobre jogos infantis levam a uma pergunta sobre televisão (p. 7), descabida em relação ao que podia ser o significado do restante texto do capítulo sobre a importância do brincar ou, quando a propósito de uma viagem de carro, se pergunta se “já te aconteceu adormeceres no carro?” (p. 22), ou seja, uma pergunta sem profundidade de análise e que pode ser respondida, afirmativa ou negativamente, sem mais explicações. Porém, outra há que são muito bem inseridas. Veja-se a pergunta “E a tua família como é?” (p. 23) e que pode trazer um excelente motivo para um debate bem profundo e diverso. 

Do que gostei?

Da excelente qualidade literária (Artlogy, 2023) do texto, aliás uma outra cláusula do contrato que a editora gere com os/as autores/as, ligada a outra que também pude reconhecer ao longo do tempo em que tenho convivido com a Ana Maria Boléo: “as qualidades humanas dos autores” (Artlogy, 2023). Ponto 2). É um texto irrepreensível do ponto de vista da qualidade literária, num registo de língua literária cuidado, com recurso continuado “aos diversos níveis de língua, embora seja frequente fixar-se na língua cuidada” (Porto Editora, 2024) e na língua corrente. A língua é também manipulada e manuseada com enorme prazer para alcançar os objetivos que se propôs. Não há erros de concordância, nem de tipo algum. A leitura flui, parece que não demorou tempo nenhum a procurar esta ou aquela outra palavra adequada a cada situação o que, para a autora não é um exercício nada difícil uma vez que “o seu nível cultural condiciona o nível de língua utilizado” (Porto Editora, 2024)
Em alguns momentos fez-me lembrar um autor de que muito gosto e que muito frequentemente cito: Eugénio de Andrade que também usa as palavras com um enorme gozo, às vezes quase infantil. Num tempo em que o domínio da língua oral e escrita viu reduzirem-se o léxico que as crianças usam quer no dia-a-dia quer em casa, ou na interação entre pares assim como no discurso oral, na escola e em mil outras situações sociais, é um bálsamo ler um livro em que as palavras fluem, “São como um cristal/ as palavras/ Algumas, um punhal/um incêndio/ Outras,/ orvalho apenas.”

. Da capacidade que tem o livro de provocar diversas emoções pois é a elas que se dirige, sempre: sejam as auditivas, as gustativas, as olfativas, as visuais ou as do puro prazer que se tem de contar uma história, sobre um assunto e um tema muito sério, muitas vezes mesmo antagónico e discutível na cultura mais arreigada e tradicional de uma comunidade. 

A forma como enfrenta, sem rodeios, um tema desafiante, como já foi feito em O Dia em que chegaste, É proibido falar disso, livros sobre o mesmo assunto e que se vai juntar a muitos outros sobre o tema genérico de família como Uma família é uma família, é uma família, ou ainda Por quem me apaixonarei e muitos outros sobre temas afins (tipologias de família e de relações entre as pessoas). 

Falar de família(s) não é uma tarefa simples. Nunca esqueço aquela professora primária que, à beira da reforma, nos anos 80 do século passado, em formação na Didática da História e Estudo do Meio, me dizia “ter acabado com a família na sala de aula”....
Falar de famílias múltiplas não será tarefa simples. 
Falar de famílias monoparentais não será tarefa simples. 
Falar de famílias que nascem no coração não é uma tarefa simples. Falar de diversidade familiar é difícil porque os preconceitos enraizados não permitem abertura de asas para o mundo de outros diferentes de nós. 
Falar dele num livro permite que, de uma forma real, outros possam ver o nosso ponto de vista, tentem perceber como funcionamos, que obstáculos enfrentamos, e, como acontece em qualquer família, que inseguranças trazemos, que certezas reforçamos, que mitos e preconceitos desfazemos. 

A Ana Maria traz-nos aqui um mote e, qual soneto, constrói uma empatia que leva quem o lê a pensar que é bom ter uma família, seja ela qual for. A adoção é um tema que, embora possa crer que não tive muito tempo para pesquisar, não tem sido, em língua portuguesa e em Portugal, uma grande inspiração. Se se excetuar o livro Reis procuram Príncipes (2016) não conheço mais nenhum que, de dentro para fora e, de um ponto de vista de gente comum, aborde o assunto de um jeito tão convidativo à reflexão. 

Depois deste exercício de leitura de um livro incluído numa coleção de livros para crianças, mantenho uma dúvida inicial, que foi crescendo mais à medida que dele fui fazendo uma segunda e terceira leituras: não sei se ali é o seu melhor lugar. Também não sei se o tom de felicidade, quase sem problemas alguns, sem escolhos que nele perpassa é o mais adequado mas, dada a formação e opção humanista da autora, faz todo o sentido num curso de formação de professores, de animadores, de jornalistas, de pais e mães, de juristas...em todas as conversas, em todos os fóruns de leitura que, de uma forma séria, sejam abertos à discussão, ao confronto de ideias e ao respeito pelo outro.   

Referências:
Artlogy. (2023). Publique o seu livro infantojuvenil. Acedido em 27/fev.2024  https://www.artelogy.com/pt/informacoes/publique-o-seu-livro-infantojuvenil

Instituto Superior de Educação e Ciência (2023). Lançamento do livro A Fantástica Casa Amarela. ISEC.

PNL. (2023) Clubes de Leitura. Escolas apoiadas 2023/2024. Acedido em 27 fev. 2024
https://www.pnl2027.gov.pt/np4/escolas_apoiadas_CLE_2023-24.html

PNL.(223). Clubes de Leitura. Tutoriais. https://www.pnl2027.gov.pt/np4/cle_tutoriais.html
Porto Editora – Registos de língua na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-02-27]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$registos-de-lingua
 

< Voltar