Dia Mundial do Livro

Texto de Ana Maria Pessoa

Com a liberdade, livros, flores e a lua, quem poderia não ser feliz?
Oscar Wilde

Se um livro não nos magoa e esfaqueia, não tem interesse
Kafka

Em 1996, a UNESCO decidiu criar o Dia Mundial do Livro, um dos muitos e muitos dias mundiais e (inter)nacionais, partindo de uma tradição medieval catalã de se oferecer, no Dia de S Jorge, uma rosa em troca de um livro. Acrescentou-lhe a ideia de comemoração do dia de nascimento ou morte de escritores que, como o/a de William Shakespeare, tivesse ocorrido a 23 de abril. 

Ler livros tem sido sempre, sempre, e assim continua a ser, pelos títulos que se escolhem, um ato de resistência ao poder, aos adversários, à ignorância. 
Não é por acaso que, em todas as épocas, revoluções e revoltas – de Berlim (maio de 1933) a Mossul (fev. 2015) se assiste à destruição de livros, à vontade férrea de usar o poder de determinar quais obras que se (não) podem ler. 

Em épocas de repressão, a leitura é uma das áreas mais afetadas como o atestam as perseguições a autores, algumas mesmo a título póstumo, quando o pensamento crítico é acossado por se afirmar como manifestação de rebeldia e luta contra os poderes instituídos, como acontece em Farenheit 451 e muitos outros textos que foram calados por muitos regimes e religiões antes e depois do Cristianismo, do Estado Novo, pelas ditaduras, pelas democracias iliberais desse mundo.

A leitura sempre foi (e continua a ser) uma atividade de minorias alfabetizadas e letradas. Em Portugal, essa é ainda uma realidade mesmo que, apenas no último meio século, se tenha avançado mais do que nos últimos cinco anteriores. Dados recentes (ICS, 2020) apontam para práticas culturais de leitura alarmantes quando concluem que 61% dos inquiridos não leu qualquer livro impresso no último ano e que a maioria também não frequenta quaisquer bibliotecas ou livrarias.  

Num dia de reflexão sobre a importância de ler, sobretudo da leitura não escolarizada, volte-se a Daniel Pennac que, no livro Como um romance (1992), definiu os dez direitos de qualquer leitor/a - “direito de não ler, de saltar páginas; de não terminar um livro; de reler; de ler qualquer coisa; de ler em qualquer lugar; de ler uma frase aqui e outra ali; de ler em voz alta; de não falar do que se leu.... –  que ainda estão muito longe de ser reconhecidos como uma prática quotidiana, interiorizada e valorizada.

Ler é uma atividade que exige tempo, vontade e, como todo o hábito que se quer enraizado, tem de se começar bem cedo. 
A leitura tem de ser encarada como gosto a que se segue o prazer e, como refere Barthes (1973), “o prazer é pessoal e intransferível”, ou seja, não se aprende. A única via para o alcançar é o contágio, feito desde muito cedo, através da cumplicidade, das leituras em voz alta, das interrogações partilhadas e dos medos discutidos. 

Esse gosto e prazer podem transformar-se em vício, o vício da leitura, assumido e tido como o único defeito saudável em qualquer ser humano. Magistralmente definido por Afonso Cruz (2021) em O Vício dos Livros como o fora antes descrito por Georges Steiner e Michel Crépu em O Silêncio dos livros e Esse vício ainda impune (2012), o vício da leitura exige que se leia tudo o que se vê,  que se sinta o síndroma de abstinência ou de ressaca quando não tem um livro à mão, que se traga sempre um livro em qualquer circunstância que, apesar de ter muitos livros, se hesite sempre na escolha do que vai ler a seguir, que nunca entre numa livraria sem trazer um livro, ... 

Nesta 26ª edição, em mais um Dia Mundial do Livro, é preciso defender a existência deste dia, visto como uma pausa que promove o acesso à loucura da leitura que “deve resultar numa transformação [porque] um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha” (Cruz, 2021).